Retomadas de São Paulo ao Pará

Angela Kaxuyana é uma das principais articuladoras da aproximação entre seu povo e os quilombolas de Oriximiná, cujos territórios estão sobrepostos no norte do Pará. Ela escuta as experiências de Giselda Pires de Lima, a Jera, da Terra Indígena Tenondé Porã, que junto com os xondaros e xondarias do povo Guarani Mbya está construindo pontes com os movimentos sociais na cidade de São Paulo, em luta pela demarcação.

“Não é a caneta do ministro da Justiça que vai dar a nossa terra”

Jera é uma das lideranças Guarani Mbya da Terra Indígenas Tenondé Porã, localizada na zona sul de São Paulo. Há mais de dez anos a frente da luta pela demarcação das terras de seu povo, Jera partilha algumas dessas experiências - entre atos realizados no centro da cidade e ações de retomada das terras - e explica a importância do território para as comunidades Guarani Mbya.

“O povo Guarani Mbya precisa de terra pra plantar, pra fortalecer sua cultura, pra preservar a nossa maneira de ser, que chamamos de nhandereko, o nosso modo tradicional de ser, porque a gente não tinha caça, não tinha pesca, não tinha rio, não tinha espaço pra plantar as nossas sementes tradicionais e o tamanho da nossa terra tava matando a nossa cultura guarani. Nesse momento atual existe um movimento muito grande desses xondaros, dessas xondarias, que significa ‘homens e mulheres das aldeias indo pra luta’. Uma das ações muito forte foi quando, há dois anos atrás, a gente foi e paramos a rodovia dos Bandeirantes, uma das rodovias principais da cidade de São Paulo. A gente foi com muitos sentimentos misturados, medo, ansiedade, preocupação, mas um dos sentimentos muito forte foi o sentimento consciente de que estávamos lutando por um direito legítimo nosso, e que todos os outros sentimentos, um pouco ruim, foi suprido, foi derrotado por essa coragem que ali se misturava, dos xondaros e das xondarias. Foi um momento muito marcante pra mim, Jera, no meio de tantos xondaros e tantas xondarias, que em um momento eu entrei em pânico, quando eu vi mais de cem motoqueiros ali, acelerando as motos, vindo pra cima, e aí quando eu olhei já tinha crianças na rodovia pras quais a gente tinha falado pra ficar na beira. E só de pensar que aqueles motoqueiros podiam avançar e que a gente podia ter tragédias e tudo mais, meu coração veio no pescoço. Eu fico muito emocionada quando lembro disso… E de repente senti uma mão pequena segurando a minha mão, daí quando olhei era uma das minhas sobrinhas, pequenininha igual eu, mas já com 24 anos, dois filhinhos, aí gritou em guarani: 'Penembaraete ke xondaro'; 'Tenham força xondaros, não tenham medo!', e ao mesmo tempo apertando muito forte a minha mão, ela me trouxe de volta naquele momento pra esse sentimento de luta, porque estamos aqui pra lutar. Desse momento em diante a gente ficou pensando muito, que a gente não pode parar essa luta. Depois disso a gente ficou muito forte na nossa luta. Fazer as retomadas nas áreas que já estão reconhecidas pela Funai como nossa é uma das continuidades dessa luta. Hoje eu estou muito feliz na aldeia Kalipety, que já tem dois anos, aonde eu já consegui recuperar e fortalecer cinco tipos de batata doce guarani tradicional, plantar milho, mandioca, feijão, em uma quantidade e maior, tendo a possibilidade de compartilhar isso com todo mundo da aldeia, é muito bom. É difícil explicar esse sentimento de felicidade que se mistura com a esperança de que a gente pode ter de novo o nosso modo de ser, o nosso nhandereko. Há três anos era só eu, Jera, no meio dos homens, enfrentei muitas coisas internamente. As aldeias guarani não estão acostumadas, a comunidade guarani não tá acostumada com a mulher liderança, essa mulher que também sai pra fora, que também lidera o grupo fora e dentro da aldeia. Mas hoje não é mais só eu. Hoje tem muitas mulheres atuando, falando, gritando, hoje na Tenondé tem mais de 15 mulheres atuando ativamente.”

“O nosso inimigo não é o índio nem o quilombola. O nosso inimigo tá lá em Brasília”

Angela Kaxuyana vive na Terra Indígena Kaxuyana-Tunayana e é uma das principais lideranças na luta pela demarcação na região da Calha Norte, no Pará. Ela relata o histórico de lutas de seu povo para retornar ao seu território tradicional, do qual foram removidos violentamente durante a ditadura militar. Angela conta sobre a aliança entre povos indígenas e quilombolas, que, unidos, tornam-se mais fortes para pressionar os encaminhamentos dos processos de regularização fundiária de suas terras. Ela participa da Associação dos Povos Indígenas Kaxuyana, Tunayana e Kahyana (Aikatuk), é secretária executiva da recém criada Federação dos Povos Indígenas do Pará (Fepipa) e também faz parte da Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira (Coiab).

“Esse processo da demarcação da Terra Indígena começa em 1968, mais precisamente no dia 20 de fevereiro de 1968, data mais triste que o meu povo enfrentou. Nessa data meu povo é levado, transferido, foi um objeto de violência do próprio Estado. Na época da ditadura era comum retirar os povos indígenas das suas terras de origem, assim como o modelo do Parque Indígena do Xingu. O meu povo também sofreu essa violência, em que o Estado, através da Força Aérea Brasileira, junto com a Igreja Católica transferiu todos os indígenas daquela região do rio Trombetas e rio Cachorro e foram levados para o Parque Indígena do Tumucumaque. Em 2004 os quilombolas de Cachoeira Porteira entram com um pedido do reconhecimento do território quilombola. Os indígenas e quilombolas dão as mãos e dizem 'estamos juntos, não somos inimigos e a gente tá firme e forte pra continuar lutando pelos nossos territórios'. A gente fala de autonomia, mas na prática, essa autonomia indígena assusta muito - quando há uma decisão dos indígenas e quilombolas vem um discurso como o que a gente escutou: 'Ah, mas esse acordo não tem validade jurídica'. A gente tá do mesmo lado, o nosso inimigo não é o índio nem o quilombola, o nosso inimigo tá lá em Brasília, é a PEC 215, são as outras leis, é a própria morosidade do processo de reconhecimento desses territórios”.