"A gente compartilha e aprende ao mesmo tempo"

Histórias cruzadas no encontro entre duas mulheres, e lideranças, indígenas, uma Tariana (AM) e outra Munduruku (PA)

texto Victoria Franco fotos Luiza Calagian

“Vá, minha filha, vá. Faça a sua voz valer junto à dos povos indígenas de todo o país”, ouviu de seu pai antes de sair. Almerinda Ramos Lima é do povo Tariana, veio de São Gabriel da Cachoeira, às margens do Rio Negro, no Noroeste Amazônico, para o Acampamento Terra Livre 2017, em Brasília (DF).

Alessandra, à esquerda, e Almerinda, durante o 14º ATL | Foto: Luiza Calagian/ISA

Almerinda foi a primeira mulher a chegar, em 2012, à presidência da Federação das Organizações Indígenas do Rio Negro (FOIRN), que reúne vinte e três povos da região na luta por seus direitos constitucionais. Conta isso com uma dose de orgulho tão vasta quanto a que despeja ao falar de seu pai, Armando de Lima. Foi ele quem cativou a menina de quinze anos a tornar-se a liderança que agora é.

Desde a adolescência, quando ainda morava na comunidade Nova Esperança, Alto Rio Uaupés, acompanhava o pai em assembleias e encontros do movimento indígena local. Em casa, quando criança, vivia entre brigas: as viagens, parte da rotina de uma liderança que representa seu povo, afastavam o pai de casa e não agradavam a mãe de Almerinda. A promessa já gasta de Armando era o que dissolvia parcialmente o incômodo: “Um dia, a gente vai colher os frutos dessas viagens”, dizia ele, incansavelmente, a cada e toda vez.

Hoje, aos 44 anos, Almerinda ainda permite que a antiga fala do pai a toque; começou a se apiedar do julgamento que ele recebia desde que herdou para si a qualidade de liderança, e passou a deixar, igualmente, o lar pela luta. Entretanto, as idas e vindas de Armando, mesmo entre desagrados diante de sua família, não contrastavam com a tradição:

“Eles querem ser o tal: ‘Mulher, você fica aí. Eu sou o homem, você fica calada’”, conta Almerinda.

Mas Almerinda rompeu com essa tradição. Não aceitou, nas palavras dela, que a mulher tenha “que estar no cantinho”. Para se juntar, em Brasília, a povos e mulheres indígenas de várias regiões do país, conta que teve que deixar o filho de dois anos aos cuidados dos irmãos, de 16 e 24 anos, e do pai, no Amazonas.

Em sua segunda vinda ao Acampamento Terra Livre, Almerinda dialogou com Alessandra Korap, mulher munduruku que veio de Itaituba (PA), no Médio Tapajós. O que as conecta é a participação ativa no movimento indígena como mulher. “Nós, mulheres, sabemos que é uma luta fazer tanta coisa ao mesmo tempo”, conclui Alessandra depois de nos apresentar os malabarismos que faz para dar conta de sua rotina.

Com 33 anos, Alessandra é coordenadora da Associação Indígena Pahyhy'p (AIP), uma das organizações representativas do povo Munduruku. Ao ser questionada sobre a divisão de tarefas em casa com o marido, suspira abrindo um sorriso estreito para responder com seus três “não” seguidos, um atropelando o outro: “nã-nã-não”.

Almerinda volta-se para Alessandra. O gesticular de suas mãos dá suporte à eletricidade do verbo. Fala, simultaneamente, para Alessandra e para si própria: “Às vezes a gente fica admirada com nós mesmas, né? ‘Nossa, como que eu consegui? Tenho criança pequena, mas eu consigo”. Mal conclui a fala e a resposta da guerreira munduruku se lança no diálogo:

“É que os homens, apesar de serem mais fortes de corpo… Nós somos mais fortes de sabedoria. Isso é o que somos”.

As palavras chegavam potentes à boca de Alessandra. E eram de uma instabilidade justificável e posteriormente compreensível. Alessandra, à medida que nos cedia seu tempo em entrevista, dispersava-se com os contínuos toques no celular. Os olhos escorregavam de nós para a tela, os dedos se agitavam percorrendo o telefone. É que, enquanto conversávamos, seu povo bloqueava um ponto-chave da rodovia Transamazônica (BR-230) para o escoamento de soja nos portos do Rio Tapajós. O que motivava a manifestação era, fundamentalmente, o protesto contra o desmonte da Funai e o pedido pela demarcação da Terra Indígena Sawre Muybu.

Para Alessandra, a articulação conjunta de homens e mulheres, como aconteceu para que a BR-230 fosse interditada, é fundamental: “Agora tem que trabalhar junto para fortalecer a luta”, diz. Ela também vê a representatividade da mulher indígena no Congresso Nacional como um dos pilares para a consolidação dos direitos dos povos indígenas, mas lembra, com desencanto, que os indígenas são minoria.

Almerinda, para quem o importante é compartilhar cotidianos e aprender com outras mulheres, encoraja Alessandra:

“Tem que sonhar alto, manter o olhar no horizonte para seguir firme”.